Para trabalhar com a informação é primordial ter um bom texto. Para se produzir um bom texto é indispensável um bom português. Para ter um bom português conheça mais sobre a gramática e sobre o leitor inconformado.
"Marcelo Torres lê com prazer as Dicas de português. Diverte-se com o trato irreverente dado aos assuntos. Gosta do aperto em que as palavras se metem. E torce pelo final feliz. De quebra, relembra lições e tira dúvidas. Mas nem tudo são flores. De vez em quando, fica inconformado com certos atrevimentos. É o que ocorreu no domingo. No finalzinho da coluna "Chacina lingüística", havia a informação: "Corte o houveram do vocabulário. Ele nunca — nunca mesmo — lhe fará falta". Marcelo se arrepiou. Em protesto, mandou este recado: "Você há de convir que há casos em que o houveram é utilizado corretamente, segundo a norma culta. A terceira pessoa do plural do verbo haver, no pretérito perfeito ou mais-que-perfeito do indicativo [ufa!] é... houveram. Esse tal de houveram pode fazer falta, sim. Ou não pode?" Depende. A resposta tucana tem explicação. Quer ver?
Sem vez 1
O haver joga no time do Bombril. Tem mil e uma utilidades. Uma delas foi assunto da coluna de domingo. Na acepção de ocorrer e existir, ele só se conjuga na 3ª pessoa do singular: Houve (ocorreram) manifestações emocionadas depois da morte de João Hélio. Fato inédito: na segunda, havia (existiam) deputados saindo pelo ladrão do plenário. Viu? O haver é impessoal. O ocorrer e o existir não têm nada com a história. Flexionam-se sem caprichos. Ainda bem!
Sem vez 2
Haver também se presta à contagem de tempo. Indica passado. Senhor do ido e vivido, mantém-se impávido colosso na 3ª pessoa do singular: Mudei-me para cá há três meses. Lula governa o Brasil há quatro anos. Chegamos há poucos minutos. Havia seis horas que ele tinha saído de casa.
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No papel de relógio ou calendário, o dissílabo adora armar ciladas. Como quem não quer nada, junta-se à preposição atrás. Forma, então, baita pleonasmo. Olho vivo. Fique com um ou outro: Cheguei há duas horas. Cheguei duas horas atrás.
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A impessoalidade é contagiosa. Os auxiliares de verbo impessoal tornam-se também impessoais: Havia seis pessoas na sala. Devia haver seis pessoas na sala. Poderia haver seis pessoas na sala. .
Sem vez 3
Na formação dos tempos compostos, o haver se associa ao ter. Um ou outro podem fazer as vezes de auxiliar. Aí, ambos se conjugam em todas as pessoas. Mas o houveram, coitadinho, não aparece. Sabe por quê? Em nenhum dos nove tempos casadinhos, o pretérito perfeito ou o mais-que-perfeito têm vez: tenho (hei) amado, tínhamos (havíamos) amado, teriam (haveriam) amado, tiver (haver) amado, tenha (haja) amado, tivesse (houvesse) amado..
A hora e a vez
E o houveram? Ele não tem vez mesmo? Tem. Para chegar lá, uma condição se impõe. É desvendar outros sentidos do dissílabo. Um deles: considerar. Outro: possuir. Mais um: obter. Aí o verbo entra na vala comum. Conjuga-se em todas as formas: Os deputados houveram (consideraram) por bem comparecer à sessão. As famílias houveram (possuíam) de tudo, mas hoje nada mais possuem. Os pais houveram (obtiveram) notícia do êxito do filho nos Estados Unidos.
Carona
Você sabia? Reaver pertence à família de haver. Quer dizer tornar a haver, recuperar: A família reouve as jóias roubadas. Anna Nicole, a loura das tragédias e dos escândalos, brigou nos tribunais. Mas não reouve a herança do marido bilionário. Atenção, precipitados. Reaver confirma o dito de que filho de peixe sabe nadar. Como o pai, é cheio de manhas. Só se conjuga nas formas em que aparece o v, de haver: havemos (reavemos), haveis (reaveis), houve (reouve), houvemos (reouvemos), houveram (reouveram), haverá (reaverá), haverás (reaverás), haveremos (reaveremos), haverão (reaverão), haveria (reaveria), haveríamos (reaveríamos), haveriam (reaveriam).
Sem protesto
Marcelo, eis o resumo da ópera. A coluna reouve o houveram. Bom proveito".
Fonte: DAD SQUARISI, 14/2/7, Estado de Minas